Moda como extensão do corpo: Gucci e Donna Haraway
- Larissa Souza
- 16 de ago. de 2020
- 8 min de leitura
A marca Gucci, nasce com o jovem Guccio Gucci, empregado do Savoy Hotel, ficou impressionado com a quantidade de bagagem que circulava pelo Hotel. Inspirado nessa visão retorna à sua cidade, Florença, conhecida pela alta qualidade de materiais e artesãos qualificados.
Guccio, reúne um grupo de artesãos em um escritório e inicia sua jornada pela fabricação e venda de artigos em couro. Mas são seus filhos, Aldo, Rodolfo e Vasco Gucci que ampliam a marca promovendo filiais em Roma e Milão. Em 1953 alcançaram Nova York. As estrelas de Cinema já posavam com suas peças em eventos e revistas e a marca já se tornara um estilo de vida, o que contribui para sua reputação e dominação no mercado.
Porém na família Gucci as polêmicas não findaram. Maurizio, filho de Rodolfo assumiu a presidência da marca, quando demitiu seu tio Aldo que foi preso por sonegação de impostos. Maurizio se mostrou um péssimo gestor e vendeu ações da empresa a uma companhia do Bahrein. Mais tarde foi assassinado por um assassino de aluguel a mando de sua ex-esposa, que foi condenada por isso. Sendo assim Domenico De Sole, advogado da família foi promovido a diretor da Gucci América em 1994 e posteriormente chefe executivo da marca.
Cientes da reputação da marca, em 1990 convidam Tom Ford para criar uma coleção Ready-to-Wear, que acaba por inseri-los de vez no universo do vestuário. Em 2004 o contrato de Ford finaliza, e sua última coleção gerou diversas críticas positivas, além de especulações sobre quem poderia substituí-lo à altura. Foi quando ingressou a designer que já trabalhava na marca, Frida Giannini, que em 2005 é nomeada diretora criativa do grupo feminino e em 2006 torna-se diretora geral de todo o selo da marca.
Em 2014 Giannini deixa a marca, quando assume o atual diretor, Alessandro Michele.
Gucci inverno 2019
Alessandro Michele, depois de diversas criações que fez para a marca conseguiu estabelecer essa relação entre o grotesco e o belo de forma primorosa. Sempre trazendo referências inusitadas a fim de trazer força ao discurso que pretende propor.
Foi na coleção de Outono/Inverno 2019 que Michele aborda o “Manifesto Ciborgue: Ciência, Tecnologia e Feminismo-Socialista” da bióloga e socióloga Donna Haraway publicado em 1984.
O texto de Haraway critica as fronteiras que existem na identidade de gênero impostas neste sistema binário que sempre coloca de forma oposta as vivências masculinas e femininas. Além de ver as tecnologias como ferramenta fundamental para reeducação de nossos corpos. Haraway vê como decadente essa hierarquização feita de poderes irreais inventados pelo próprio homem através de um mito de origem que contempla apenas a um grupo restrito: Homens, brancos, héteros e cis.
Este ensaio é um argumento em favor do prazer da confusão de fronteiras, bem como em favor da responsabilidade em sua construção. É também um esforço de contribuição para a teoria e para a cultura socialista-feminista, de uma forma pós-modernista, não naturalista, na tradição utópica de se imaginar um mundo sem gênero, que será talvez um mundo sem gênese, mas talvez também um mundo sem fim. A encarnação ciborguiana está fora da história da salvação tampouco obedece a um calendário edípico(...).(Haraway, 1984)
A autora vê no corpo feminino, principalmente no corpo feminino que é vítima do sistema Capitalista uma subversão. Já que o ciborgue está determinantemente comprometido com a parcialidade, a ironia e a perversidade. Ele é oposicionista, utópico e nada inocente. Não mais estruturado pela polaridade do público e do privado, sua natureza e cultura são reestruturados (Haraway, 1984), principalmente por ser um corpo historicamente constituído pela perda da inocência sobre nossa origem.
A descoberta dessa “não inocência” é recente através da sua inclusão no mercado de trabalho e da consciência tomada ao se entender como unidade política, principalmente no que tange raça, gênero, sexualidade e classe. Visto que o capitalismo se utiliza das fronteiras criadas comercialmente para dominar este corpo e atuar sobre ele ainda de forma violenta.
De forma geral Haraway fala sobre a importância de entender e conhecer a potencialidade das tecnologias, principalmente da microengenharia e da biotecnologia para derrubar essas fronteiras e tomar parte nessa atuação política da qual o corpo feminino e “feminizado”, isto é, as vivências que não são representadas pela força dominadora masculina, branca, hétero e cis, ainda estão marginalizadas.
A parcialidade permanente dos pontos de vista feministas têm consequências para as nossas expectativas relativamente a formas de organização e participação políticas. Para trabalhar direito, não temos necessidade de uma totalidade. O sonho feminista sobre uma linguagem comum, como todos os sonhos sobre uma linguagem que seja perfeitamente verdadeira, sobre uma nomeação perfeitamente fiel da experiência, é um sonho totalizante e imperialista. Nesse sentido, em sua ânsia por resolver a contradição, também a dialética é uma linguagem de sonho.
Talvez possamos, ironicamente, aprender a partir de nossas fusões com animais e máquinas, como não ser o Homem, essa corporificação do logos ocidental. (Haraway, 1984)
E partindo desta premissa do como “não ser” Haraway questiona porque a nossa existência deveria ser limitada ao fim dessa pele e porque consideramos como seres outros corpos também envolvidos pela pele, sugerindo todas as extensões que o corpo vive ao longo de sua existência.
Nas passarelas da Gucci essa questão sobre os gêneros já é compreendida logo na abertura, com a entrada de um modelo de terno e cabelos longos, em que é difícil identificar seu gênero (foto 1), aqui surge como uma provocação do estilista ao espectadores sobre a real necessidade de saber essa informação. Outros símbolos são levantados para reforçar essa premissa, como lenços, turbantes e máscaras, que remetem a religião, para colocar a figura do ciborgue não somente como sem gênero, mas também sem religião.
Alguns modelos carregam animais como camaleão (foto 2) ou cobras, que remetem ao Manifesto, quando Haraway coloca que já não há diferenças entre o corpo humano e o corpo animal; outros carregam a própria cabeça (foto 3) como acessório, ou vestem uma capa para roupas, o que remete ao homem como mercadoria.
Michele sugere que estes ciborgues são ávidos por novidades e transformações, que buscam construir suas identidades (foto 4), por isso abusa de todo tipo de simbologia, da cultura pop a religião, tecidos das mais diferentes texturas, estampas florais, lisos, lãs, além das sobreposições completamente inusitadas. Esses ciborgues ao mesmo tempo que consomem todos os estilos, gêneros e religiões, também rejeitam qualquer modelo permanente de definição de si.
Já a sala de desfile (foto 5) é um ambiente hospitalar, com paredes de PVC, luzes de led, hardware de pânico, mesa cirúrgica ao centro e sinalização no chão. Os convidados se localizam em cadeiras beges nas laterais que remetem a salas de espera de hospitais, enfatizando a sensação de angústia e mal-estar que estes ambientes geralmente sugerem.
Partindo desse universo criado por Donna Haraway e imaginado por Alessandro Michele que observaremos seu comportamento diante das teorias da comunicação.
Desfile no contexto das Teorias de Comunicação
Um desfile de moda em suma não pode ser considerado um meio de comunicação per si, mas possui sua ambiência, assim como mensagem que se faz através da linguagem visual e sonora proposta pelo conjunto de símbolos apresentados pelo estilista e equipe criativa. Desta forma veremos como tanto a teoria da Escola de Frankfurt quanto às Teorias dos Meios se fazem através do desfile de Outono/Inverno 2019 por Alessandro Michele para a Gucci.
Gucci e Escola de Frankfurt
O sistema da moda se constitui através da cópia e da réplica, desde o início ainda no período Aristocrático. Mas é quando as maisons se estabelecem e o Prêt-à-Porter passa a coexistir com a Alta Costura, fruto do processo de democratização que afeta também a moda. Porém o Capitalismo acaba por evidenciar as diferenças sociais, assim como popularizou os métodos de reprodução, vide Singer, que foi um processo relevante para o movimento de emancipação da mulher por volta dos anos 1960.
Porém mesmo que o público esteja em busca da sua individualidade,o movimento Hype ainda predomina, lembrando que a ostentação persiste como instituição social. Desta forma não importa se o sujeito possui poder aquisitivo para possuir aquele produto das marcas de luxo, já que o importante aqui é o impacto de possuir. Desta forma cada vez mais é possível encontrar réplicas no mercado, que inclusive são cada vez mais difíceis de distinguir, como o caso destes em que se observados por uma tela só possível perceber pela localização da abelha bordada mais abaixo (foto 6) da posição original (foto 7), além de detalhes acerca da qualidade do material e acabamento. A diferença de valores do original para a réplica é de R$3.140,00.
A Gucci é uma marca muito inovadora quanto a tendências para as semanas de moda, sempre de uma forma instigadora e incomum e por isso acaba sendo influência para estudantes e marcas renomadas no mundo todo, da mesma forma que na indústria da moda existe uma cultura da cópia, em que empresas pedem para que o produto seja feito “tal qual a referência”, isto é, exatamente igual. E mesmo que exista um movimento de retorno da cultura dos brechós e slow fashion as empresas de fast fashions ainda dominam o mercado, promovendo coleções de forma quase histérica com trocas por vezes semanais, gerando cada vez mais resíduos ao planeta, mesmo já sendo a indústria que gera mais resíduos não recicláveis.
Mesmo que no aspecto do entretenimento a teoria da Indústria Cultural, na atualidade, possua suas controvérsias devido a mudança de comportamento humano, a moda permanece e faz acontecer a lógica da Indústria Cultural, um desses aspectos se prova pela transformação das Culturas marginalizadas em mercadoria, promovendo o lucro das marcas e invisibilizando a cultura originária. A indústria da moda possui incontáveis exemplos, mas o desfile analisado anteriormente já se faz suficiente.
Logo após a data deste desfile, a Gucci lançou em seu site as peças que seriam comercializadas do desfile, o que incluía uma peça de gola alta preta com recorte na altura da boca com uma borda vermelha (foto 8), desfilada na passarela somente como uma faixa na altura da boca (foto 9). A peça gerou polêmica por remeter ao Black Face, inclusive por a peça ter sido pensada exclusivamente nestas especificações e não existir variações. A marca se posicionou pedindo desculpas de forma evasiva pelo erro e retirando todas as peças do mercado.
A intenção do estilista era abordar a cultura e a religião de uma forma globalizada, inspirado no Manifesto Ciborgue de Donna Haraway, porém acabou por fazer uma abordagem problemática.
Gucci e Teoria dos Meios
Sob a ótica da Teoria dos Meios este desfile é extremamente esclarecedor. Alessandro Michele busca fazer uma abordagem do corpo ciborgue, sem gênero, cultura específica ou religião. Utilizando de referências do Manifesto Ciborgue de Donna Haraway.
Mc Luhan em sua obra fala sobre a efetividade da mídia através de um ambiente ressonante, e partindo deste conceito podemos analisar o desfile desde sua ambientação, em que a sala de desfile representa um espaço hospitalar pintada em um tom de verde claro, com luzes brancas, mesa de cirurgia, marcações no chão e cadeiras semelhantes às usadas em salas de espera, sob a trilha sonora de ruídos misturados com batidas semelhantes ao ritmo do coração, em que os modelos eram apresentados sem pausa buscando criar no imaginário dos espectadores essa clínica hospitalar onde esses novos corpos, nem tão humanos, eram criados repetidamente de forma quase massiva.
É atuando nesse sistema límbico, deste espectador que “vê nascer” esta Ciborgue que o estilista busca entrar, através dessa interação quase tátil em que os modelos aparecem em seguida sob “peles” diferentes que busca agir, da mesma forma que seu personagem na passarela é um consumidor ávido que está sempre em busca de modificações e novidades que o torne único, da mesma forma é o espectador vislumbrado com o desfile. Isso se deve ao fato de atualmente estarmos vivendo a “cauda longa”, o que antes na moda era o boom de vendas de produtos de forma uniforme, agora compreende aos nichos específicos em que o consumidor não quer simplesmente comprar, ele quer se sentir atraído pela experiência, e pela sensação de exclusividade.
Quando Mc Luhan afirma em seu texto que o meio é a mensagem, isto é, não importa a mensagem veiculada, pois o meio per si possui a sua mensagem e afeta na receptividade da mensagem podemos analisar o desfile não como meio, mas como ambientação para que isso ocorra. Um desfilie dessa magnitude, de uma marca de luxo reverbera na imprensa, assim como aconteceu, desde a escolha dos adornos para gerar impacto através do emocional, como os animais extremamente realistas, como até os modelos que carregavam protótipos da própria cabeça em desfile. As reações foram as mais diversas, sempre através do espanto ou encanto. Movimentando os sentimentos do espectador que entra em estado de dúvida em relação ao que é real ou irreal.
Aqui seguem outros registros do desfile que ilustram as proposições feitas por Michele aqui discutidas, todas reprodução da FFW.






























































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